Eu conheci Luís Carlos na escola de Ensino Médio onde ele
estudava. Nosso vínculo se construiu a partir de meu trabalho com o Atendimento
Educacional Especializado, que, por não ter ambiente adequado, na época, era
realizado no espaço da biblioteca. Luca, como eu o chamava, era leitor ávido,
gostava de ler filósofos e apreciava as mesmas bandas de rock que eu. Com o
tempo, nos tornamos grandes amigos. Era extremamente educado, estudioso,
inteligente e tinha personalidade excêntrica, característica comum em muitos
adolescentes. Tinha bom gosto para a música, embora bastante eclético. Gostava
de dança, amava a arte em geral. Queria dançar balé, queria pintar, queria
desenhar, queria falar inglês e francês, queria escrever, queria fazer
Medicina, queria conhecer o mundo, queria viver e encontrar- se... Queria...
Queria... Eram tantos os quereres!
Cheio de sonhos, nenhum deles impossível; faltavam-lhe apenas
as oportunidades. Há ausência de políticas públicas sérias para os jovens,
principalmente para aqueles que fogem aos padrões preestabelecidos pela
sociedade conservadora, pois a presença dos preconceitos, dos estigmas e das
discriminações é inescrupulosamente disseminada entre as pessoas. E nas
pequenas cidades esse mal é, vergonhosamente, escancarado.
Luís era ímpar, era único. Como a própria mãe relatou-me, “era
muito especial e não cabia nesse mundo.” Dono de uma sensibilidade peculiar,
teve sua vida marcada por grandes amarguras. Parecia frágil, mas foi um gigante
até enquanto suportou. Ah... E como suportou! Ele precisava apenas de uma porta
aberta diante de si, mas todas as portas estavam fechadas para ele. A sutil
hipocrisia alheia o impedia de ser visto e aceito. “Eu não te conheço, tu não
me conheces, mas posso emprestar-te os meus olhos para que me vejas através
destes”, já dizia Jacob Moreno, criador do Psicodrama. Apresentei- lhe este
poema, certa vez, e ele emocionou- se. Neste dia, disse-me que ainda
não tinha emprestado seus olhos a ninguém, assim, nunca o tinham visto como,
verdadeiramente, se reconhecia. Era um garoto, como tantos garotos e
garotas de sua idade, que se perdem onde deveriam encontrar-se.
E havia textos e textos esperando para serem decifrados em
seus cabelos pintados, de tempos em tempos, nos mais diversos tons; em suas
unhas longas; em sua maquiagem, exageradamente, linda e impecável; e em seu
estilo de vestir-se. Sua mente pensante o levava para o alto e para longe...
Muito distante de cada um que nunca foi pelo menos perto de onde ele esteve.
Seus amores foram muito intensos. Na mesma intensidade foram
suas dores. Todavia, mesmo quando precisava de ajuda, ao me ver,
abria um sorriso enorme e seu olhar profundo lia-me como a um
livro. Se percebesse que algo me afligia, perguntava imediatamente
em seu português de pronúncia e escrita impecáveis: “Gatinha, queres que eu te
ajude?”. Ele precisava de ajuda, entretanto renunciava a si mesmo, para fazer a
quem amava sentir-se melhor. Eu conheci o Luís Carlos, nós
compartilhamos ombros, ouvidos e abraços, fui amiga, mãe e confidente. A nossa
amizade autoriza-me a falar.
Na sexta-feira, dia 04 de junho, entre tantos porquês
revisitados, o tênue fio que separa a razão de todas as outras coisas, talvez
tenha se rompido e, em busca dos sentidos, ele lembrou-se do rio. Levantou-se,
despiu-se e seguiu. Os mesmos passos rápidos e largos, corpo ereto e cabeça
erguida, como sempre caminhou. Talvez buscasse a si mesmo e para esse encontro
foi como assim chegou a essa existência: despido. Há tanta filosofia presente
no ato de despir-se que é impossível ser compreendida por almas comuns.
Banhar-se nas águas do Rio Tocantins sempre teve para ele um
significado de lavar-se de todas as coisas, de livrar-se, de despir-se
retirando de si o peso dos preconceitos carregado nas costas e marcado na alma.
Os que viram-no passar, não se sensibilizaram, outros riram,
muitos fotografaram, outros filmaram. Ninguém se aproximou, ninguém o olhou com
seus olhos... Ninguém o parou para ajudá-lo. Ninguém o socorreu. É
difícil entender. Luís foi um ser humano lindo, amigo, completamente leal,
sinceramente verdadeiro e com quem aprendi muito.
Sua curta existência de apenas dezenove anos não será
esquecida. Quantos lindos seres humanos ainda teremos de perder?
Canto para ti um verso da música que me enviaste em nossa
última conversa. “Ela teimou e enfrentou o mundo, se rodopiando ao som dos
bandolins.” Onde estiveres, te pedimos perdão. Quem sabe um dia,
todos entenderão que foram cruéis. Como cantou Renato Russo: “A humanidade é
desumana, mas ainda temos chance. O sol nasce para todos.” Enquanto a reflexão
não vem e a mudança não acontece, continuamos na luta por liberdade, igualdade
e justiça social.
Luís Carlos, PRESENTE!
Deise Cortez e Rute Santos
Muito triste que a indiferença e o preconceito tenham sido maiores e mais eficazes que o respeito, o cuidado, o afeto. Que esse texto triste, numa bonita homenagem, toque corações enfurecidos e chegue como oração a Luis Carlos
ResponderExcluirO adjetivo era "endurecidos"*
ResponderExcluir