segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O último ovo frito

Era noite. Elisa estava sentada à mesa estudando, seus pais já haviam dormido e as filhas dela ainda assistiam tv. Era fim de ano e, como de costume, elas estavam passando as férias na casa do casal. O relógio já se aproximava da meia noite, quando Paulinho bateu na janela, chamando por ela: 
___ Elisa, por favor, abra aqui! 
___ Oi mano, o que aconteceu? 
___ Não aconteceu nada, só estou com fome. Frita aí um ovo para mim. 
___ Ovo frito uma hora dessas?! É mais saudável você comer um lanche.Que tal um pedaço de bolo e um leite morno com chocolate?
___ Depois de hesitar alguns minutos ele respondeu: 
___Tá bom, tá bom...traga, traga e não demore.

O jovem Paulo, carinhosamente apelidado de Paulinho, sofria de esquizofrenia e a sua expressão não estava muito agradável naquela noite, por isso Elisa não abrira a porta, apenas a janela de vidro, já que era protegida por uma grade. O rapaz de cinquenta anos era o terceiro na ordem de nove irmãos. Acometido pela doença desde os quinze anos de idade, era fácil seus familiares interpretarem até o seu olhar, o qual revelava que o comportamento estava alterado. A esquizofrenia oscila a personalidade, dividindo-a em várias fases e aquela família conhecia muito bem todas elas. 

Em poucos minutos, Elisa preparou o achocolatado e o serviu com o pedaço de bolo pela grade da janela. Ele comeu tudo rapidamente, como sempre fazia com qualquer refeição, devolveu o copo e despediu-se de forma ríspida: 
___ Pega, eu já vou...
___Quer um copo d’água?
___ Não! Não! No meu quarto tem água. Tchau!

Paulinho estava hostil para prolongar conversas e com um ar de cansaço e de dor, que preocupou Elisa. Depois de fechar a janela, ela pediu que as meninas desligassem a tv e fossem deitar-se; apagou as luzes da casa, deixando acesa apenas a que clareava a sala de jantar, em cuja mesa estava o seu notebook de estudos; sentou-se novamente à mesa e retornou à leitura, com o pensamento divagando em alguns momentos no irmão. 

Na manhã seguinte, a mãe de Elisa comunicou que Paulinho não aparecera para tomar café e que não estava no quarto. Elisa explicou o ocorrido na noite e ambas deduziram que ele saíra bem cedo. Era véspera de ano novo, elas ocuparam-se o dia inteiro com os preparativos para a festa de réveillon que iriam na casa de um parente. Todavia, sempre estranhando e comentando o fato dele não aparecer para almoçar. 

No dia seguinte ele também não aparecera, a partir dessa notícia a família, parentes e amigos começaram a procurá-lo. Foram dias de buscas e angústias; até seu corpo ser encontrado entre os arbustos numa fazenda, no dia oito de janeiro. Elisa foi a única da família que o vira por último, antes da inesperada partida, e lamentou-se, profundamente, ao lembrar-se de que não havia realizado o seu último desejo: comer um ovo frito. A vida é cheia de inesperados que trazem amarguras e Elisa compreendeu a importância de atender a pequenos pedidos, tão ao seu alcance. 


 Rute Santos

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